sexta-feira, 15 de outubro de 2010

1º Professor negro,durante pelo menos dez anos, o antropólogo Kabengele Munanga, nascido na República Democrática do Congo (antigo Zaire) e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, foi o único professor negro a lecionar em um programa de pós-graduação em Antropologia no Brasil.




"Sem paixão a gente não faz nada"
Kabengele Munanga
Renata da Silva Nóbrega, Bacharel em Relações Internacionais(UnB) é mestranda em Sociologia (Unicamp)
renata@irohin.org.br
Kabengele Munanga - Foto: Pedro Amatuzi
Durante pelo menos dez anos, o antropólogo Kabengele Munanga, nascido na República Democrática do Congo (antigo Zaire) e professor titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, foi o único professor negro a lecionar em um programa de pós-graduação em Antropologia no Brasil. Kabengele passou dez anos sem participar das reuniões da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Em 1996, sua proposta de mesa foi recusada pela organização da ABA. Em 2006, a mesa redonda da qual participaria como palestrante só foi aceita depois de um recurso enviado à organização da ABA, que inicialmente havia recusado a proposta. No encontro da 25ª Reunião da ABA, realizado em junho de 2006, em Goiânia, Kabengele foi homenageado como "o decano dos antropólogos negros no Brasil". No dia oito de junho, o professor Kabengele Munanga nos concedeu a entrevista que segue abaixo. A entrevista, portanto, é anterior à II CIAD, o que justifica seu comentário sobre as expectativas acerca da Conferência.
Ìrohìn: Vamos começar pela sua história no Brasil: como você veio parar aqui?

Kabengele: Um pouco de aventura, mas não era uma aventura pura porque a Universidade de São Paulo estabeleceu um convênio de cooperação com algumas universidades africanas. Era um convênio entre a USP e o Itamaraty. O Itamaraty pagava a passagem e a USP dava uma bolsa de estudos de dois anos para terminar o mestrado e para o doutorado. Eu vim com uma bolsa de dois anos pro doutorado. Foi assim que cheguei em 75. Em 77 

terminei o doutorado. Voltei para minha universidade mas a situação política era insustentável porque naquela época a gente vivia numa ditadura militar e em todas as ditaduras a opinião crítica que vem da academia não é bem-vinda. Além disso, eu já tinha na minha família presos políticos que estavam contradizendo o ditador Mobutu. Então, eu também estava da mesma maneira. E quando vi que não dava mais, voltei ao Brasil depois de oito meses e comecei a dar aula aqui. Comecei na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde dei aula de 79 a 80. Em 80, entrei na USP, onde estou até agora como professor. Creio que vou me aposentar aqui.

Ìrohìn: Como você foi recebido no Brasil? Sentiu dificuldades por ser um migrante africano?
Kabengele: Não, na época eram poucos os africanos. Eram raríssimos. Dentro da USP, os africanos que vinham desse convênio não chegavam a dez pessoas. Lembro que havia duas pessoas da Costa do Marfim, uma pessoa do Senegal, dois do Congo, uma pessoa de Uganda. Então eram poucas as pessoas. Não tinha problemas, mas era aquela coisa: todo mundo se aproximando, querendo saber se já cacei um leão, se tem televisão na África, se tem estradas. Muitos compreendiam África como se fosse um país ou uma aldeia, ou coisa assim, como sempre. Não mudou grande coisa. Então não tinha nenhum problema. Tinha aquelas idéias pré-concebidas sobre a África. Muitos me perguntavam se eu tocava algum instrumento e quando eu dizia não a pessoa ficava surpreendida porque qualquer africano tem que tocar alguma coisa, porque o negro tem a musicalidade no sangue. Essas coisas que fazem parte do preconceito, que eu chamo de um preconceito que é simplesmente no nível da verbalização, mas que não deixa de ser uma visão preconceituosa sobre a África. É preconceito também misturado com a ignorância. As pessoas ignoravam a África.



Ìrohìn: Agora vamos conversar sobre a universidade. Quantos professores negros existem na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP)?

Kabengele: Olha, contando no dedo eu não sei. Não poderia chegar a dez. Claro, o professor Milton Santos [falecido em 2001] fazia parte do contingente de professores negros da FFLCH. Há as pessoas novas que entraram: o professor Wilson Barbosa, que está na História, eu aqui na Antropologia, a Rita Chaves que está nas Letras, entrou a Lídia nas Letras, novas contratações. A Márcia é mais uma jovem que entrou na Ciência Política. Na minha contagem não chega a dez. Acho que somos oito.

Ìrohìn: E qual é a relação de vocês?
Kabengele: Somos colegas, todo mundo se conhece, têm consciência. Nem todo mundo milita, mas todo mundo sabe o que é. Não tem uma organização formal, mas existe cumplicidade.

Ìrohìn: E na Antropologia, são quantos os professores negros?
Kabengele: Na Antropologia eu sou o único negro. Não tem outra pessoa.

Ìrohìn: E como é ser um professor negro numa universidade tão "prestigiada" como a USP?
Kabengele: Não sei. Só os outros podem ver o que não vejo. Eu sei que é uma raridade ser um professor negro numa universidade como esta. Não sei como os outros me vêem. Eu me vejo simplesmente entre colegas, trabalhando duro como todo mundo para ser um bom professor, bom pesquisador. Mas você tem consciência de que é uma peça rara num universo particular que é o universo de colegas brancos. É como dizia o professor Milton Santos quando perguntaram se ele já havia sentido racismo ou preconceito na academia e ele dizia que a academia é um mundo de hipocrisia. As pessoas não abrem o jogo.



Ìrohìn: Você enfrentou dificuldades para consolidar sua carreira devido ao racismo?

Kabengele: Não sei dizer. A única coisa que sei é que trabalhei duro. Creio que todos os negros, para chegarem em algum lugar, tenham que dar mais que os colegas brancos. E isso deve ter aberto algumas barreiras que pelo trabalho não teria. Não sei dizer se não há. O fato de ser o único professor negro num departamento de Antropologia que trabalha com a diversidade, onde deveria ter mais representantes dessa diversidade, é uma coisa que surpreende.

Ìrohìn: Há alguma abertura na USP para discutir a questão racial?
Kabengele: Não, não tem abertura. A USP tinha abertura pra pesquisar. Tem pesquisadores que fizeram trabalhos excelentes tanto no campo dos estudos das religiões, da cultura negra, como no campo da história, com muitos trabalhos sobre a escravidão, sobre o tráfico. Florestan Fernandes e a Escola Paulista inauguraram uma linha de pesquisa que desde a década de 1960 trabalha com a questão da mobilidade racial. Eles demonstraram que não se trata apenas de discriminação econômica, mas que há realmente barreiras raciais. A USP fez pesquisas interessantes, em termos teóricos e de pesquisas empíricas, mas não avançou nos problemas da atualidade, que é a questão, por exemplo, da política de ações afirmativas, de cotas. Aí todos ficam presos ao mito da democracia racial. Não vejo avanços.



Ìrohìn: E sobre o INCLUSP? (Programa recentemente aprovado pela USP, no qual estudantes oriundos de escola pública têm um bônus de 3% em suas notas na primeira e na segunda fase do vestibular.)

Kabengele: O INCLUSP, se você já leu o documento pode ver que aquilo é uma grande mentira para mostrar que a USP quer fazer alguma coisa, porque os critérios utilizados não contemplam a questão específica do negro. São critérios que contemplam os excluídos econômicos, mas os negros que reúnem, além da exclusão econômica, a exclusão racial, não foram contemplados no projeto da USP. Não creio que isso vá mudar algo do ponto de vista da inclusão do negro na USP. A experiência vai mostrar isso. Estou convencido de que nada mudará.

Ìrohìn: E na Antropologia, há mais professores que defendem as cotas?
Kabengele: Que eu saiba, não. Pelo menos pelos escritos, não. Há faculdades que tomaram posição radicalmente contrária. Aqui na Antropologia alguns que se pronunciam dizem que a cota vai trazer a raça, que há risco de transformar o Brasil nos Estados Unidos, que teremos conflitos que foram evitados até agora. Não vejo realmente um discurso a favor das cotas, pelo menos no Departamento de Antropologia, que seria, talvez, um dos departamentos mais indicados, porque lida com as questões da diversidade, produz pesquisas sobre isso.


Ìrohìn: O que você tem a dizer sobre o papel de intelectuais na luta contra o racismo e o papel desempenhado por intelectuais como Peter Fry, Ivonne Maggie e Demétrio Magnoli, que se colocam frontalmente contrários às cotas?

Kabengele: O intelectual é, em primeiro lugar, uma pessoa que produz um conhecimento crítico sobre a sociedade e esse conhecimento pode transformar a sociedade. Como membro da sociedade, ele pode, politicamente, tomar uma posição em favor das mudanças. E esses colegas que passaram a vida deles trabalhando sobre a questão do negro, que denunciaram o racismo, estão contrários às propostas de mudança, contra as propostas de ações afirmativas e das cotas. Eles acham que isso vai mudar o modelo da sociedade brasileira, que é um modelo de convivência racial por causa da mistura racial; que isso vai transformar o Brasil numa sociedade bi-racial, e, como conseqüência, vai levar o Brasil aos conflitos raciais que jamais conheceu. Nesse sentido, são claramente contrários às cotas. Quer dizer, de um ponto de vista, os negros serviram como objeto de pesquisa mas não servem como sujeitos de mudanças.

Ìrohìn: Como o racismo opera na universidade?
Kabengele: É como eu retomei aquela frase do professor Milton Santos: a universidade é um lugar de hipocrisia. Os que pesquisaram nesse campo sempre denunciaram o racismo à moda brasileira, mas uma parte grande dos colegas na universidade ainda está presa ao mito da democracia racial. Eles acham que é um problema de luta de classes, problema econômico, a ponto de mesmo aqueles que sempre denunciaram o problema racial dizerem que as cotas devem ser pra escola pública, com brancos e negros beneficiados igualmente. Aqueles que são a favor das cotas não querem fazer diferenciação entre brancos e negros. Eles acham que é a mesma coisa. De novo, uma maneira de voltar ao mito da democracia racial, consciente ou inconscientemente. Creio que o discurso da universidade é um discurso perverso.



Ìrohìn: E a forma como o racismo atua no acesso à universidade?

Kabengele: São todos defensores do mérito acadêmico porque acham que o vestibular tradicional é o sistema mais justo e mais igualitário, que escolhe os melhores, independentemente da cor da pele. O princípio meritocrático é um princípio que obedece à lei do darwinismo social: na luta pela vida, os melhores ganham. Mas quem são os melhores? São aqueles privilegiados que nasceram numa classe média ou alta, que tiveram acesso a uma boa educação. A maioria defende o princípio do mérito acadêmico, da qualidade do ensino superior que as cotas, segundo eles, podem prejudicar. Do meu ponto de vista é totalmente o contrário: você não pode colocar um ponto de partida igual para todos os concorrentes porque o ponto de partida é desigual. O que se mede na realidade não é a potencialidade intelectual, mas a situação social dos concorrentes.

Ìrohìn: Você tem orientado vários alunos no mestrado e no doutorado, estudantes negros...
Kabengele: Somando, no total foram seis mestres e vinte doutores. Pouquíssimos negros. Posso contar nos dedos: Jacques D’Adesky, Nilma Lino, Alecsandro, Camila, Taynar, Eliana de Oliveira. Seis ou sete pessoas.

Ìrohìn: Você é convidado para participar de bancas em outras universidades. Tem alguma avaliação sobre a produção desses intelectuais?
Kabengele: Eu acho que a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, quantitativamente e proporcionalmente, produziu mais mestre e doutores negros do que a USP, apesar de ser uma universidade paga.



Ìrohìn: E o conteúdo?

Kabengele: Todas essas teses trabalham sobre a questão do negro. São trabalhos excelentes. São várias áreas de pesquisa, sobre religião, literatura, questão de gênero, todos assuntos que dizem respeito ao negro em várias áreas do conhecimento e linhas de pesquisa que examinei tanto na USP como na PUC, quanto em outras universidades, como a UFBa.

Ìrohìn: Você tem alguma sugestão ou conselhos para pesquisadores negros que querem seguir carreira acadêmica?
Kabengele: Eles devem ter consciência de que a academia não é ausente de preconceitos, que eles encontrarão barreiras na academia, que desqualifica os próprios projetos deles, dizendo que os projetos dos candidatos negros não têm um caráter científico, são incompletos, são emocionais, é isso e aquilo... Isso é uma coisa que vão encontrar na academia, mas nem por isso devem se desmotivar. Têm que lutar, acreditar nas idéias deles. Se alguém desqualificar o projeto, devem pedir crítica, pedir orientação, pedir nova bibliografia, mas sem abrir mão de sua identidade enquanto pesquisador negro. Como que as pessoas me identificam? E difícil alguém ler meu texto e achar que sou branco. No entanto, faço uma análise, mas de um ponto de vista que é a linguagem da vítima. Não dá pra deixar isso de lado. Não dá pra se policiar muito porque a emoção faz parte do processo de conhecimento. A emoção é a irmã gêmea da razão. Não há como separar as duas coisas. A emoção não impede uma análise científica. Pelo contrário, pode até ser um fator de motivação. Sem paixão a gente não faz nada.

Ìrohìn: Você vai participar da II CIAD? Quais são suas expectativas para a conferência?
Kabengele: Olha, não sei o que vai ser aquilo lá. Acho que vai ser mais político que acadêmico. Creio que em todos os encontros científicos internacionais sempre há pessoas que fazem análises interessantes, há pessoas que fazem mais turismo do que análise, há de tudo. No meio de tudo isso, teremos coisas interessantes que ajudam a pensar e coisas que não servem pra nada, como em todas as reuniões.

Ìrohìn: Até agora não foi divulgada...
Kabengele: É. Não vi divulgação. Tá muito politizada, cheia de chefes de Estado, ministros... A face política parece que tem mais peso que os próprios intelectuais. Não deixo de dizer que a participação dos intelectuais brasileiros da diáspora foi minimizada, vejo muito poucos participando. Se é um encontro de intelectuais da diáspora os outros que estão lá preteriram os intelectuais negros que estão aí. Tenho um questionamento que vai por aí. É uma coisa feita a partir de critérios políticos.

Ìrohìn: O jornal Ìrohìn está tentando dar visibilidade a alguns temas ligados aos países africanos. Como você vê a cobertura da mídia a respeito da África?
Kabengele: No geral, a mídia desconhece a África. Há muita ignorância sobre a África. A maneira de apresentar a África a gente viu nas últimas copas do mundo: os jogadores africanos eram associados aos leões, aos elefantes, coisas assim. Um certo preconceito. Nossa mídia não conhece muito bem a África. Tem um ou outro que são capazes de fazer uma boa reportagem, mas a maioria tem uma visão muito negativa sobre a África. Eu não sei como vai ser a mídia durante a CIAD, porque geralmente os encontros sobre África têm pouca cobertura. Nós tivemos em Brasília a I Conferência Internacional sobre as Políticas de Promoção da Igualdade Racial. A mídia não fez grande cobertura. Em 1988, houve aqui na USP um congresso sobre a abolição. A mídia não cobriu. Agora, como é uma coisa do Ministério das Relações Exteriores, do Itamaraty com o Ministério da Cultura, que carregam o nome de um governo que está no poder, isso talvez possa levar a mídia a fazer uma boa reportagem. Agora, o que eles vão dizer é imprevisível.

Ìrohìn: Você tem alguma sugestão pro Ìrohìn?
Kabengele: Acho que o Ìrohìn cresceu muito e cresceu bem. O jornal é de excelente qualidade. Eu sou muito preocupado com a sua sobrevivência porque nós o recebemos de graça. Não sei até que ponto vamos continuar recebendo de graça. É um jornal que tem o conteúdo da diáspora, que tem crítica, que tem análise da sociedade, que informa, que esclarece, com essa qualidade. Eu acho que está na hora de talvez encontrar um caminho para as pessoas poderem contribuir com a sobrevivência do Ìrohìn. Isso me preocupa. Claro que se fosse um jornal dirigido aos negros que não têm dinheiro seria diferente, mas eu acho que as pessoas que têm acesso ao Ìrohìn são pessoas capazes de pagar a mensalidade ou a anuidade do jornal. Eu só posso dizer parabéns. O Ìrohìn cresceu muito, melhorou muito.

Ìrohìn: Algo mais?
Kabengele: Eu gosto muito do Ìrohìn. É um jornal que tem a cara, o rosto da diáspora.

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